Você conhece alguma mulher que realizou um aborto? Quase metade dos brasileiros – 45% – acima de 16 anos respondeu que sim. Os dados fazem parte de uma pesquisa inédita realizada pelo Instituto Locomotiva e a Agência Patrícia Galvão, divulgados nesta segunda-feira (4).
A pesquisa entrevistou 1.600 pessoas, entre homens e mulheres, com 16 anos ou mais, de 12 regiões metropolitanas do Brasil no período de 27 de outubro a 6 de novembro.
O levantamento também aponta que o índice é ainda maior quando respondido pelo público feminino. 52% conhece alguma mulher que interrompeu a gravidez. A pergunta não especifica se é aborto legal ou não, mas estima-se que a maioria é clandestino.
Apesar da proximidade com o tema, um quarto dos entrevistados – 26% – declara ser favorável a que as mulheres possam decidir por interromper a gravidez.
O número já foi mais baixo, segundo Tânia Lago, especialista em saúde da mulher e direitos reprodutivos e professora do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Na última pesquisa realizada em parceria com o Ibope em 2003, com o mesmo perfil de entrevistados do levantamento desta segunda, não passava de 15% o número de pessoas que apoiavam a decisão da mulher pelo aborto.
Para Ana Teresa Derraik, médica obstetra e ginecologista, diretora do Hospital da Mulher Heloneida Stuart, no Rio de Janeiro, a questão não deve ser relacionada a uma opinião individual sobre o procedimento em si, mas, sim, ao direito a realizá-lo, ao acesso a tal serviço de forma segura. É absolutamente possível ser contra o aborto, mas a favor da descriminalização.
50% defendem a prisão de quem aborta
A polícia também é pouco citada quando questionados sobre a quem compete o debate do tema. Cerca de 8 em cada 10 brasileiros acreditam que a discussão do aborto no Brasil é uma questão de saúde pública ou de direitos, o que mostra a contradição nas opiniões.
Escolaridade
A pesquisa revela uma relação direta entre grau de escolaridade e o direito ao aborto. Quanto maior a escolaridade, maior o percentual de favoráveis a que as mulheres possam decidir entre interromper a gravidez ou não.
Até o fundamental completo, 67% afirma ser contrário ao direito e 22% a favor. O índice sobe para 35% favoráveis e cai para 54% contrários no público com ensino superior completo.
Os dados também apontam que metade das mulheres afirmam que jamais interromperia uma gravidez. Já os homens, 48% disseram que não permitiriam que a parceira fizesse um aborto.
Embora a maioria ainda se declare contrária ao direito de abortar, oito em cada 10 brasileiros dizem ser favoráveis à interrupção em ao menos uma das seguintes situações: gravidez não planejada; família não tiver condições financeiras; gestação em meninas com até 14 anos, feto diagnosticado com alguma doença grave ou incurável; risco de vida na gestão e ou no parto; gravidez proveniente de um estupro.
Metade diz ser favorável ao procedimento se o feto for diagnosticado com alguma doença grave ou incurável, como quando a mulher é diagnosticada com o vírus da zika. O risco de morte da gestante também é fator de aprovação do aborto para 61%. O índice sobe ainda mais em caso de a mulher ter ficado grávida vítima de um estupro – 67%.
Desde 2012 o aborto é legalizado no Brasil em casos de gravidez fruto de violência sexual, se coloca a vida da mulher em risco e anencefalia do feto. Entretanto, no início de novembro, a Comissão especial da Câmara dos Deputados aprovou o texto-base da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 181 que pretende criminalizar todos os casos de aborto no Brasil, inclusive quando a gravidez é resultante de estupro.
A proposta tem gerado inúmeros protestos em diversas cidades do Brasil e foi um dos motivadores da pesquisa.
“O momento é propício para captar a percepção da população frente aos permissivos legais para a interrupção da gravidez em face das ações de deputados e senadores de proibir o aborto até em casos já previsto em lei, como de risco de morte da gestante; gravidez em consequência de estupro; e em caso do feto ser diagnosticado com doença grave e incurável, como a proposta de emenda constitucional 181”, afirma Jacira Melo, diretora-executiva da Agência Patrícia Galvão.
“Há uma parcela significativa da sociedade que aceita e quer pensar a problemática do aborto de maneira racional. A proposta da pesquisa é contribuir com o debate tendo em perspectiva a percepção da sociedade. Os dados da pesquisa surpreenderam positivamente. Parcela significativa compreende que os permissivos legais são uma dimensão da lei, da legalidade da interrupção da da gravidez no país”, completa ela.
Estigmas
Na avaliação de Ana Rita Prata, defensora pública e coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção dos Direitos da Mulher (NUDEM), embora o tema esteja sendo mais discutido, ainda não foi possível eliminar os estigmas associados às mulheres que realizaram ou desejam fazer um aborto.
“Concretiza o quanto nossa sociedade ainda é conservadora. Estamos em um momento de recrudescimento de direitos. Os direitos das mulheres são sempre os escolhidos para serem cortados em momentos de crise. No meu entender, infelizmente, a pesquisa demonstra o que a gente está passando no nosso país.”
“Isso percorre muito do imaginário da forma como o tema é colocado para a sociedade. De que quem faz isso é uma pessoa que não tem acesso, religião, valores, descrita como uma pessoa fora dos padrões aceitáveis do ponto de vista moral e ético”, complementa.
Em setembro deste ano, levantamento feito pelo NUDEM apontou 55 casos de mulheres denunciadas por crime de autoaborto no estado de São Paulo. 30 foram transformados em ação penal. A maioria dos casos foi denunciado por profissionais de saúde que prestaram atendimento às mulheres.
Para Ana Teresa Derraik, as posições conflitantes reveladas pela pesquisa endossam a ausência de conhecimento da população e de comprometimento do poder público.
“A pesquisa revela muito o tom passional que ocupa as pessoas quando vão responder sobre essa questão. Falta no âmbito individual empatia de se colocar no lugar do outro. E no âmbito público falta informação. Falta as pessoas, as políticas de gestão, darem rosto, humanizarem os dados para que quando essa informação chega na população, chegue de forma verídica, real, o perfil da mulher que busca o aborto.”
A especialista defende que os avanços nos direitos e acesso ao procedimento só poderão ocorrer quando o tema for entendido como uma questão grave de saúde pública, descontaminado de conceitos éticos e, principalmente, religiosos.
“A opinião das pessoas sobre punição espelha bem o desconhecimento e a vontade de não querer se envolver, se afastar do problema, quando na verdade isso não está distante. Um dos primeiros passos pare resolver qualquer problema é ter consciência que ele existe. Importante que a gente assuma sem nenhum tipo de preconceito, deixando de lado não só preconceitos, mas valores. São números, estão aí, eles existem. O assunto precisa ser trataado baseado nesses números. O que vamos fazer para diminuir essa incidência?”
“O acesso atende a quem é contra e quem é a favor. O que todos nós queremos é que as mulheres não precisem abortar. Deixe de fora a religião e vamos trabalhar com os dados razoáveis, quais as estratégias que podemos adotar para que isso não aconteça.”
Fonte: G1
Foto: Reprodução